sexta-feira, 24 de julho de 2009

Encontro EcoCascavel

Estudos do Ecossocialismo e Ações

Domingo, 26 - às 14h

Rua Souza Naves, 3983 - Ed. Lince - 4º andar

Perto da Biblioteca Pública

domingo, 28 de junho de 2009

Ecossocialismo e planejamento democrático - Michael Löwy

Ecossocialismo” é a tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao que Marx chamou o "processo destrutivo" do capitalismo.


(2) Ela avança com uma política econômica fundada nos critérios não-monetários e extra-econômicos das necessidades sociais e do equilíbrio ecológico. Fundado nos argumentos básicos do movimento ecologista e da crítica marxista da economia política, esta síntese dialética ­– tentada por um vasto espectro de autores, de André Gorz (nos seus primeiros escritos) a Elmar Altvater, James O'Connor, Joel Kovel e John Bellamy Foster – é ao mesmo tempo uma crítica da "ecologia de mercado", que não desafia o sistema capitalista, e do "socialismo produtivista", que ignora a questão dos limites naturais.


Segundo O'Connor, o objetivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e no predomínio do valor de uso sobre o valor de troca. (3) Eu acrescentaria que estes valores requerem: (a) propriedade coletiva dos meios de produção ('coletiva' significa aqui propriedade pública, cooperativa ou comunitária); (b) planejamento democrático, que torna possível a sociedade definir os seus objetivos de investimento e produção; e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Por outras palavras, uma transformação revolucionária, econômica e social. (4)


Para os ecossocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, representadas pela maioria dos partidos Verdes, é que eles não parecem levar em conta a contradição intrínseca entre as dinâmicas de expansão ilimitada do capital e de acumulação de lucros, e a preservação do ambiente. Isto conduz a uma crítica do produtivismo, muitas vezes relevante, mas não vai além de uma economia de mercado ecologicamente reformada. O resultado é que muitos partidos Verdes se tornaram no álibi ecológico de governos social-liberais de centro-esquerda. (5)


Por outro lado, o problema das correntes dominantes na esquerda ao longo do século XX – a social-democracia e o movimento comunista de inspiração soviética – é a sua aceitação do padrão de forças produtivas realmente existente. Enquanto a primeira se limitava a uma versão reformada do sistema capitalista, keyenesiana na melhor das hipóteses, a segunda desenvolveu uma forma autoritária de produtivismo coletivista – ou capitalista de Estado.

Os próprios Marx e Engels não ignoravam as conseqüências de devastação ambiental do modo de produção capitalista; há várias passagens do “Capital” e de outros textos que indicam esta compreensão. (6) Além disso, eles acreditavam que o objetivo do socialismo não é produzir mais e mais bens, mas proporcionar aos seres humanos tempo livre para desenvolverem plenamente as suas potencialidades. Nesta medida, têm pouco em comum com o 'produtivismo', isto é, com a idéia de que a expansão ilimitada da produção é um objetivo em si.


Porém, as passagens dos seus escritos sobre o efeito do socialismo no desenvolvimento das forças produtivas para além dos limites impostos pelo sistema capitalista, circunscrevem a transformação socialista às relações de produção capitalistas, que se tornaram um obstáculo ('amarras' é o termo freqüente) ao livre desenvolvimento das forças produtivas existentes. Socialismo significaria, acima de tudo, “apropriação social” da capacidade produtiva, colocando-a ao serviço dos trabalhadores. Citando uma passagem do “Anti-Dühring”, uma obra canônica para muitas gerações de marxistas, sob o socialismo "a sociedade toma posse, abertamente e sem rodeios, das forças produtivas, que se tornaram demasiado grandes" para o presente sistema. (7)


A experiência da União Soviética ilustra os problemas que resultam da apropriação coletivista dos aparelhos de produção capitalistas. Desde o início, predominou a tese da socialização das forças produtivas existentes. É verdade que, nos primeiros anos após a Revolução de Outubro, desenvolveu-se uma corrente ecologista e foram tomadas pelas autoridades soviéticas algumas medidas limitadas de proteção ambiental. Mas com o processo estalinista de burocratização, os métodos produtivistas na indústria e na agricultura impuseram-se por meios totalitários, enquanto os ecologistas foram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl foi o exemplo acabado das conseqüências desastrosas desta imitação das tecnologias produtivas ocidentais. Uma mudança nas formas de propriedade a que não suceda uma gestão democrática e a reorganização do sistema produtivo só pode levar a um beco sem saída.

Uma crítica da ideologia produtivista do "progresso" e da idéia de uma exploração "socialista" da natureza, já aparecia nos escritos de alguns dissidentes marxistas dos anos 30, tais como Walter Benjamin. Mas é, sobretudo, ao longo das últimas décadas que o ecossocialismo se desenvolve como um desafio à tese da neutralidade das forças produtivas, que continuam a predominar nas principais correntes da esquerda do século XX.


Os ecossocialistas deveriam inspirar-se nas observações de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho de Estado capitalista e colocá-lo ao seu serviço. Eles têm de "quebrá-lo" e substituí-lo por um poder político radicalmente diferente, democrático e não-estatista. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo, que não é "neutro", mas que transporta na sua estrutura a marca do seu desenvolvimento ao serviço da acumulação de capital e da expansão ilimitada do mercado. Isto o coloca em contradição com as necessidades de proteção ambiental e com a saúde da população. Ele deve, portanto, ser "revolucionarizado", num processo de transformação radical.


É claro que muitas conquistas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o conjunto do sistema produtivo deve ser mudado, e isto só pode ser feito por métodos ecossocialistas, i.e, através de um planejamento democrático da economia que leve em conta a preservação do equilíbrio ecológico. Para alguns setores da produção, isto pode significar uma descontinuidade. Por exemplo: instalações nucleares, certos métodos de pesca industrial em massa (responsáveis pelo quase-extermínio de numerosas espécies marinhas), o abate destrutivo de florestas tropicais, etc. – a lista é muito longa. No entanto, começa por exigir uma revolução no sistema energético, com a substituição das atuais fontes (sobretudo fósseis), responsáveis pelo envenenamento do ambiente, por fontes renováveis de energia: água, vento, sol. Este tema é decisivo porque as energias fósseis (petróleo, carvão) são responsáveis por muito da poluição no planeta, assim como pelas mudanças no clima. A energia nuclear é uma falsa alternativa, não só pelo perigo de novos Chernobyl, mas também porque ninguém sabe o que fazer com milhares de toneladas de resíduos nucleares – tóxicos durante centenas, milhares e por vezes milhões de anos – e com gigantescas instalações obsoletas e contaminadas. A energia solar, que nunca levantou grande interesse nas sociedades capitalistas (não sendo "rentável" ou "competitiva"), deve tornar-se objeto de investigação e desenvolvimento intensivos e ter um papel-chave no desenvolvimento de um sistema energético alternativo.


Tudo isto deve ser realizado sob as condições necessárias do pleno emprego e do emprego justo. Estas condições são essenciais, não só para cumprir um desígnio de justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe trabalhadora ao processo de transformação estrutural das forças produtivas. Este processo é impossível sem o controle público dos meios de produção e sem planejamento, isto é, decisões públicas sobre investimento e mudança tecnológica que devem ser tomadas longe dos bancos e das empresas capitalistas, de modo a servirem o bem-comum da sociedade.


Mas não basta colocar estas decisões nas mãos dos trabalhadores. No terceiro volume do “Capital”, Marx definiu o socialismo como “a sociedade onde os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas (Stoffwechsel) com a natureza". Mas no primeiro volume do “Capital” é feita uma abordagem mais ampla: o socialismo é concebido como "uma associação de seres humanos livres (Menshen) que trabalha com meios de produção comuns (Gemeinschaftlichen)” (8). Esta concepção é muito mais apropriada: a organização racional da produção e do consumo tem que ser obra não são só dos "produtores", mas também dos consumidores; com efeito, de toda a sociedade, com a população produtiva e também "não-produtiva", a qual inclui estudantes, jovens, domésticas (e domésticos), pensionistas, etc.


Neste sentido, toda a sociedade poderá escolher, democraticamente, que linhas produtivas devem ser privilegiadas, e que recursos deverão ser investidos em educação, saúde ou cultura. (9) Os próprios preços dos bens não serão deixados às leis da oferta e da procura, mas determinados, até onde for possível, por critérios sociais, políticos e ambientais. Inicialmente, isto envolveria apenas taxas sobre alguns produtos e preços subsidiados para outros. Mas, idealmente, com o avanço da transição para o socialismo, mais e mais produtos poderiam ser distribuídos sem custos e de acordo com a vontade dos cidadãos.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Ecossocialismo: Rumo a uma nova civilização - Michael Löwy

As atuais crises econômica e ecológica são parte de uma conjuntura mais geral e histórica: nós estamos confrontados com uma crise do atual modelo de civilização, a civilização capitalista/industrial moderna ocidental, baseada na expansão e acumulação ilimitadas do capital, na “mercantilização de tudo” (Immanuel Wallerstein), na cruel exploração do trabalho e da natureza, no individualismo e na competitividade brutais, e na destruição massiva do ambiente.


Michael Löwy
*Tradução: Paulo Piramba (Enlace-RJ)

A ameaça crescente de colapso do equilíbrio ecológico aponta para um cenário catastrófico – o aquecimento global – que coloca em perigo a própria sobrevivência da espécie humana (1).

O ecossocialismo é uma tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical, enraizada nos argumentos básicos do movimento ecologista, e na crítica marxista da economia política. Ele contrapõe ao progresso destrutivo capitalista (Marx), uma política econômica fundada em critérios não-monetários e extra-econômicos: as necessidades sociais e o equilíbrio ecológico. Esta síntese dialética, formulada por um largo espectro de autores, de James O’Connor até Joel Kovel e John Bellamy Foster, e de André Gorz (em seus primeiros escritos) até Elmar Altvater, é, ao mesmo tempo, uma crítica à “ecologia de mercado”, que não se confronta com o sistema capitalista, e ao “produtivismo socialista”, que ignora a questão dos limites naturais.


De acordo com James O’Connor, o objetivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e no predomínio do valor de uso sobre o valor de troca. Eu acrescentaria que estes objetivos requerem: (a) propriedade coletiva dos meios de produção, – “coletiva” aqui significando propriedade pública, cooperativa ou comunitária; (b) planejamento democrático que torne possível que esta sociedade defina metas de investimento e produção, e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Em outras palavras, uma transformação social e econômica revolucionária (2).


O problema das tendências dominantes entre a esquerda, durante o século 20 – social-democracia e o movimento comunista inspirado na União Soviética –, é a sua aceitação ao modelo realmente existente de forças produtivas. Enquanto a primeira se limitava a uma reformada – no máximo keynesiana – versão do sistema capitalista, a segunda desenvolveu uma forma de produtivismo coletivista – ou capitalista de estado. Em ambos os casos, a questão ambiental permaneceu fora de vista, ou foi marginalizada.


Marx e Engels, eles mesmos, não foram indiferentes às conseqüências ambientalmente destrutivas do modo de produção capitalista: existem várias passagens no Capital e outros escritos que apontam para esse entendimento (3). Além disso, eles acreditavam que a meta do socialismo não é produzir mais e mais bens, mas dar aos seres humanos tempo livre para que eles possam desenvolver completamente suas potencialidades. Nessa medida, eles têm pouco em comum com o “produtivismo”, isto é com a idéia de que a expansão ilimitada da produção é um fim em si mesmo.


Contudo, existem algumas passagens em seus escritos que parecem sugerir que o socialismo irá permitir o desenvolvimento das forças produtivas, além dos limites impostos sobre elas pelo sistema capitalista. De acordo com essa abordagem, a transformação socialista tem a ver somente com as relações capitalistas de produção, que se tornaram um obstáculo ¬ – “correntes” é o termo freqüentemente usado – ao livre desenvolvimento das forças produtivas existentes; o socialismo significaria, mais do que a apropriação social dessas capacidades produtivas, colocá-las a serviço dos trabalhadores. Citando uma passagem do Anti-Dühring, uma obra canônica para muitas gerações de marxistas: no socialismo “a sociedade toma posse de forma ampla e sem desvios das forças produtivas que se tornaram muito grandes” para o sistema existente (4).


A experiência da União Soviética ilustra os problemas resultantes da apropriação coletivista do aparato produtivo capitalista: desde o início, a tese da socialização das forças produtivas existentes predominou. É verdade que, durante os primeiros anos após a Revolução de Outubro, uma corrente ecológica foi capaz de se desenvolver, e certas medidas de proteção (limitadas) foram tomadas pelas autoridades soviéticas. Contudo, com o processo de burocratização Stalinista, as tendências produtivistas, tanto na indústria como na agricultura, foram impostas com métodos totalitários, enquanto os ecologistas foram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl é um exemplo extremo das desastrosas conseqüências dessa imitação das tecnologias produtivas ocidentais. Uma mudança nas formas de propriedade, que não é seguida pelo controle democrático e por uma reorganização do sistema produtivo, só pode terminar em uma rua sem saída.


Os marxistas poderiam se inspirar nos comentários de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparato de estado capitalista e colocá-lo para funcionar a seu serviço. Eles têm que “quebrá-lo” e substituí-lo por uma forma radicalmente diferente, democrática e não-estatizante de poder político.
O mesmo se aplica, mutatis mutandi, ao aparato produtivo: por sua natureza, sua estrutura não é neutra, mas está a serviço da acumulação de capital e da expansão ilimitada do mercado. Ele está em contradição com as necessidades de proteção ambiental e com a saúde da população. Devemos, portanto, “revolucioná-lo”, em um processo de transformação radical. Isso pode significar, para certos ramos da produção, descontinuá-los: por exemplo, usinas nucleares, certos métodos de pesca industrial em massa (responsáveis pelo extermínio de várias espécies nos oceanos), o desmatamento destrutivo das florestas tropicais, etc. (a lista é muito longa!). Em todos os casos, as forças produtivas, e não somente as relações de produção, têm que ser profundamente modificadas – em primeiro lugar, através de uma revolução no sistema energético, com a substituição da matriz energética – essencialmente fóssil – responsável pela poluição e envenenamento do ambiente, por outras renováveis: água, vento, sol. É claro que muitas descobertas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o sistema produtivo como um todo deve ser transformado, e isso só pode ser feito por métodos ecossocialistas, isto é, através de um planejamento democrático da economia, que leve em conta a preservação do equilíbrio ecológico.


A questão da energia é decisiva para esse processo de mudança civilizacional. Matrizes fósseis (petróleo, carvão) são responsáveis por grande parte da poluição planetária, como também pelas desastrosas mudanças climáticas; a energia nuclear é uma falsa alternativa, não somente pelo perigo de novas Chernobyls, mas também porque ninguém sabe o que fazer com as milhares de toneladas de lixo radioativo – tóxico por centenas, em alguns casos milhares de anos – e as gigantescas e obsoletas usinas contaminadas. A energia solar, que nunca levantou muito interesse nas sociedades capitalistas, por não ser “lucrativa” nem “competitiva”, deveria se tornar objeto de pesquisa e desenvolvimento intensivos, e cumprir um papel fundamental na construção de uma matriz energética alternativa.


Setores inteiros do sistema produtivo devem ser suprimidos ou reestruturados, novos devem ser desenvolvidos, sob a necessária pré-condição de pleno emprego para toda a força de trabalho, com condições iguais de trabalho e salário. Essa condição é essencial, não somente porque é um pressuposto de justiça social, mas também para assegurar que os trabalhadores apóiem o processo de transformação estrutural das forças produtivas. Esse processo é impossível sem o controle público sobre os meios de produção e planejamento, isto é, decisões públicas sobre os investimentos e mudanças tecnológicas, que devem ser retiradas dos bancos e empresas capitalistas, a fim de servir ao bem estar da sociedade.


A própria sociedade, e não mais uma pequena oligarquia de donos de propriedades – nem uma elite de tecnoburocratas – será capaz de escolher, democraticamente, quais linhas produtivas deverão ser privilegiadas, e o quanto de recursos que será investido em educação, saúde ou cultura. Os próprios preços das mercadorias não serão entregues às “leis da oferta e da demanda”, mas, até certo ponto, determinados segundo opções sociais e políticas, assim como critérios ecológicos, levando à taxação de certos produtos, e subsidiando o preço de outros. Idealmente, enquanto a transição ao socialismo segue adiante, mais e mais produtos e serviços seriam distribuídos de graça, a partir da decisão dos cidadãos. Longe de ser “despótico”, o planejamento é o exercício, do conjunto da sociedade, de sua liberdade: liberdade de decisão, e libertação das alienadas e reificadas “leis econômicas” do sistema capitalista, que determinam a vida e a morte dos indivíduos, e os encarceram em uma “gaiola de ferro” (Max Weber). Planejamento e a redução do tempo de trabalho são os dois passos decisivos da humanidade rumo ao que Marx chamou de “o reino da liberdade”. Um substancial aumento do tempo livre é, na verdade, uma condição para a participação democrática do povo trabalhador na discussão democrática e na administração da economia e da sociedade.
O conceito socialista de planejamento nada mais é do que a radical democratização da economia: se as decisões políticas não serão deixadas para uma pequena elite de administradores, porque não usar o mesmo princípio para as decisões econômicas? Eu estou deixando de lado a questão da proporção específica entre planejamento e mecanismos de mercado: durante as primeiras etapas de uma nova sociedade, os mercados certamente continuarão a ter um papel importante, mas na medida em que a transição para o socialismo avance, o planejamento se tornará mais e mais predominante, em oposição às leis do valor de troca.


Enquanto que no capitalismo o valor de uso é somente um meio – freqüentemente uma fraude – a serviço do valor de troca e do lucro – o que explica, a propósito, porque tantos produtos na sociedade atual são substancialmente inúteis – em uma economia socialista planejada o valor de uso é o único critério para a produção de bens e serviços, com importantes conseqüências econômicas, sociais e ecológicas. Como Joel Kovel observou: “O desenvolvimento do valor de uso e a correspondente reestruturação das necessidades torna-se agora o regulador social da tecnologia, ao invés, sob o capital, da conversão do tempo em mais-valia e dinheiro” (5).
Em uma produção racionalmente organizada, o plano preocupa-se com as principais opções econômicas, e não com a administração de pequenos restaurantes, armazéns e padarias, pequenas lojas, empreendimentos artesanais ou serviços. É importante ressaltar que planejamento não é contraditório com a autogestão dos trabalhadores sobre suas unidades de produção: enquanto a decisão de transformar uma montadora de veículos, em uma que fabrique ônibus e trens é tomada pela sociedade como um todo, através de um plano, a organização interna e o funcionamento dessa fábrica devem ser democraticamente geridos pelos seus trabalhadores.


Tem havido muita discussão em torno do caráter “centralizado” ou “descentralizado” do planejamento, mas poderíamos argumentar que a questão real é o controle democrático do plano, em todos os seus níveis, local, regional, continental e, assim esperamos, internacional: questões ecológicas, tais como o aquecimento global, são planetárias, e só podem ser resolvidas em uma escala global. Alguém pode chamar essa proposição de planejamento democrático global, o que é bastante diferente do que é usualmente descrito como “planejamento centralizado”, já que as decisões econômicas e sociais não são tomadas por nenhum “centro”, mas democraticamente decididas pela população interessada.


O planejamento ecossocialista, portanto, está alicerçado em um debate democrático e pluralista, em todos os níveis onde as decisões serão tomadas: proposições diferentes são submetidas às pessoas interessadas, na forma de partidos, plataformas, ou outros movimentos políticos, e delegados serão eleitos. Contudo, a democracia representativa deve ser completada – e corrigida – pela democracia direta, onde as pessoas diretamente escolhem – no nível local, nacional e, mais tarde, global – entre opções sociais e ecológicas principais: o transporte público deveria ser gratuito? Os proprietários de carros particulares deveriam pagar impostos especiais para subsidiar o transporte público? A energia solar deveria ser subsidiada, para competir com a energia fóssil? As horas de trabalho semanais deveriam ser reduzidas para 30, 25 ou menos, mesmo que isso signifique redução da produção? A natureza democrática do planejamento não é contraditória com a existência de técnicos, mas seu papel não é o de decidir, mas o de apresentar suas visões – comumente diferentes, se não contraditórias – à população, e deixar que ela escolha a melhor solução.


Qual a garantia de que o povo vá fazer as escolhas ecológicas corretas, mesmo que tenha de abrir mão de alguns de seus hábitos de consumo? Não existe essa “garantia” senão a aposta na racionalidade das decisões democráticas, uma vez que o poder do fetichismo no consumo tenha sido quebrado. Obviamente, erros serão cometidos nas escolhas populares, mas quem acredita que os especialistas também não cometem seus erros? Não se pode imaginar o estabelecimento dessa nova sociedade, sem que a maioria da população tenha adquirido, pelas suas lutas, sua auto-educação, e sua experiência social, um alto nível de consciência socialista/ecológica, o que torna razoável supor que erros – incluindo decisões que sejam inconsistentes com as necessidades ambientais – sejam corrigidos. Em todo caso, as alternativas propostas – o mercado cego, ou uma ditadura ecológica de “especialistas” – não serão mais perigosas que o processo democrático, com todas as suas contradições?


A passagem do “progresso destrutivo” capitalista para o ecossocialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária permanente da sociedade, cultura e mentalidades. Essa transição levará não somente a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização ecossocialista, além do reinado do dinheiro, além dos hábitos de consumo artificialmente produzidos pela publicidade, e além da produção ilimitada de mercadorias inúteis e/ou que causam danos ao meio-ambiente. É importante ressaltar que tal processo não pode começar sem uma transformação revolucionária das estruturas sociais e políticas, e o apoio ativo da vasta maioria da população ao programa ecossocialista. O desenvolvimento da tomada de consciência socialista e ecológica é um processo, onde o fator decisivo é a experiência coletiva de luta das massas, dos confrontos locais e parciais, até a transformação radical da sociedade.


Deve-se perseguir o desenvolvimento, ou escolher o “crescimento negativo” (décroissance)? Acho que essas duas opções compartilham uma concepção puramente quantitativa de “crescimento” positivo ou negativo, ou de desenvolvimento das forças produtivas. Existe uma terceira posição, que me parece mais apropriada: uma transformação qualitativa do desenvolvimento. Isso significa colocar um fim ao monstruoso desperdício de recursos pelo capitalismo, baseado na produção, em larga escala, de produtos desnecessários e nocivos: a indústria de armamentos é um bom exemplo, mas grande parte dos “bens” produzidos no capitalismo – com sua obsolescência programada – não tem outra utilidade a não ser gerar lucro para as grandes corporações. A questão não é o “consumo excessivo” em abstrato, mas o atual tipo de consumo, baseado, como é, na apropriação conspícua, desperdício massivo, alienação mercantil, acumulação obsessiva de bens, e a aquisição compulsiva de pseudo-inovações impostas pela “moda”. Uma nova sociedade deveria orientar a produção no sentido da satisfação das autênticas necessidades, começando por aquelas que poderiam ser descritas como “bíblicas” – água, comida, vestuário, habitação – mas incluindo também os serviços básicos: saúde, educação, transporte, cultura.


Obviamente, os países do Sul, onde essas necessidades estão longe de estarem satisfeitas, vão precisar de um nível muito maior de “desenvolvimento” – construindo ferrovias, hospitais, sistemas de esgoto e outras obras de infra-estrutura – do que os países industrialmente avançados. Mas não existe razão de por que isso não possa vir acompanhado de um sistema produtivo que seja ambientalmente amigável e baseado em matrizes energéticas renováveis. Esses países precisarão plantar grande quantidade de alimentos para alimentar suas populações famintas, mas isso pode ser mais bem alcançado – como os movimentos camponeses, organizados mundialmente pela Via Campesina, têm defendido há anos – com uma agricultura agro-ecológica baseada em unidades familiares, cooperativas ou fazendas coletivas, melhor do que os métodos destrutivos e anti-sociais do agronegócio industrializado, baseados no uso intensivo de pesticidas, agrotóxicos e transgênicos.


Ao invés do atual e monstruoso sistema de dívida, e a exploração capitalista dos recursos do Sul pelos países industrializados/capitalistas, deve haver um fluxo de ajuda técnica e econômica do Norte para o Sul, sem a necessidade – como alguns ecologistas ascéticos e puritanos parecem acreditar – de que as populações da Europa e da América do Norte “reduzam seu padrão de vida”: elas só vão se libertar do consumo obsessivo, induzido pelo sistema capitalista, de produtos desnecessários, que não correspondem a nenhuma real necessidade.


Como distinguir as necessidades autênticas das artificiais, falsas e transitórias? Estas últimas são induzidas pela manipulação mental, isto é, propaganda. A publicidade invadiu todas as esferas da vida humana nas sociedades capitalistas modernas: não somente alimentação e vestuário, mas também esportes, cultura, religião e política, moldados segundo suas regras. Ela invadiu nossas ruas, caixas de correio, telas de TV, jornais, paisagem, de uma maneira permanente, agressiva e insidiosa, e contribui decisivamente para hábitos de consumo conspícuos e compulsivos. Além disso, ela desperdiça uma astronômica quantidade de petróleo, eletricidade, tempo de trabalho, produtos químicos e outras matérias-primas – todas pagas pelos consumidores – em um tipo de produção que não é somente desnecessário, de um ponto de vista humano, mas diretamente contraditório com as necessidades sociais reais. Enquanto a propaganda é uma dimensão indispensável da economia de mercado capitalista, ela não teria lugar em uma sociedade em transição para o socialismo, onde ela seria substituída pela informação sobre bens e serviços, fornecidos por associações de consumidores. O critério para distinguir uma necessidade autêntica de uma artificial é sua persistência depois do fim da publicidade (Coca Cola!). É claro que, durante vários anos, velhos hábitos de consumo persistiriam, e ninguém tem o direito de dizer ao povo quais são as suas necessidades. A mudança nos padrões de consumo é um processo histórico, assim como um desafio educacional.


Vários bens, como o carro individual, trazem problemas mais complexos. Os automóveis privados são uma praga pública, matando e mutilando centenas de milhares de pessoas anualmente em escala mundial, poluindo o ar nas grandes cidades, com conseqüências horríveis para a saúde das crianças e dos idosos, e contribuição significativa para as mudanças climáticas. Porém, eles correspondem a uma necessidade real, transportando as pessoas para o trabalho, casa ou lazer. Experiências locais em algumas cidades européias, com administrações com preocupação ecológica, mostram ser possível – com a aprovação da maioria de suas populações – limitar progressivamente o percentual de automóveis individuais em circulação, em privilégio de ônibus e trens. Em um processo de transição para o ecossocialismo, onde o transporte público – de superfície ou metrô – seria amplamente estendido, e grátis, e aonde pedestres e ciclistas teriam vias protegidas, o carro particular teria um papel muito menor do que na sociedade burguesa, onde ele se tornou um fetiche – promovido por uma propaganda insistente e agressiva – um símbolo de prestígio, um signo de identidade – nos Estados Unidos, a carteira de motorista é a identificação reconhecida – e o centro da vida pessoal, social ou erótica.


O ecossocialismo é baseado em uma aposta, que já foi de Marx: o predomínio, em uma sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do “ser” sobre o “ter”, isto é, do tempo livre para a realização pessoal de atividades culturais, esportivas, prazerosas, científicas, eróticas, artísticas e políticas, ao invés do desejo pela posse infinita de produtos. A compra compulsiva é induzida pelo fetichismo pelas mercadorias inerente ao sistema capitalista, pela ideologia dominante e pela publicidade: ninguém provou que isso é parte de uma “natureza eterna humana”, como o discurso reacionário pretende nos fazer acreditar. Como Ernest Mandel enfatizou: “A acumulação contínua de mais e mais bens (com “utilidade marginal” declinante) não é, de jeito algum, uma característica universal ou, mesmo, predominante no comportamento humano. O desenvolvimento de talentos e inclinações para si próprio: a proteção da saúde e da vida, o cuidado com as crianças, o desenvolvimento de relações sociais ricas (...) tudo isso se torna a motivação principal, uma vez que as necessidades materiais básicas estejam satisfeitas” (6).


Isso não significa que não surjam conflitos, particularmente durante o processo transicional, entre as exigências de proteção ambiental e as necessidades sociais, entre os imperativos ecológicos e a necessidade de desenvolver a infra-estrutura básica, particularmente nos países pobres, entre os hábitos de consumo populares e a falta de recursos. Uma sociedade sem classes não é uma sociedade sem contradições e conflitos! Eles são inevitáveis: essa será a tarefa do planejamento democrático, em uma perspectiva ecossocialista, liberta dos imperativos do capital e da necessidade do lucro, em resolvê-los através de uma discussão pluralista e aberta, visando a uma tomada de decisão pela própria sociedade. Tal democracia de base e participativa é o único caminho, não para evitar erros, mas para permitir a auto-correção, pela coletividade social, dos seus próprios erros.


Isso é uma Utopia? No seu sentido etimológico – “algo que existe em nenhum lugar” – certamente. Mas as utopias, isto é, visões de um futuro alternativo, imagens de uma sociedade diferente, não são uma característica necessária a qualquer movimento que pretende desafiar a ordem estabelecida? Como Daniel Singer explicou em seu testamento literário e político, Whose Millenium?, em um capítulo poderoso chamado “Utopia Realista”, “se o establishment agora parece tão sólido, apesar das circunstâncias, e se o movimento operário ou a esquerda estão tão incapacitados, tão paralisados, é por causa da incapacidade em oferecer uma alternativa radical (...) O princípio básico do jogo é que você não questiona nem os fundamentos do argumento, nem as fundações da sociedade. Somente uma alternativa global, rompendo com essas regras de resignação e rendição, pode dar ao movimento de emancipação um escopo genuíno” (7).


As utopias socialista e ecológica são somente uma possibilidade objetiva, não o resultado inevitável das contradições do capitalismo, ou das “leis férreas da história”. Não se pode predizer o futuro, exceto em termos condicionais: na ausência de uma transformação ecossocialista, de uma radical mudança de paradigma civilizatório, a lógica do capitalismo levará o planeta a desastres ecológicos dramáticos, ameaçando a saúde e a vida de bilhões de seres humanos, e, talvez mesmo, a sobrevivência da nossa espécie.


* * * *


Sonhar e lutar por uma nova sociedade, não significa que não se deva lutar por reformas concretas e urgentes. Sem nenhuma ilusão sobre um “capitalismo limpo”, deve-se tentar ganhar tempo, e impor, aos poderes constituídos, algumas mudanças elementares: o banimento dos HCFCs que estão destruindo a camada de ozônio, uma moratória geral para os organismos geneticamente modificados, uma drástica redução da emissão dos gases formadores do efeito estufa, o desenvolvimento do transporte público, a taxação dos carros poluentes, a substituição progressiva dos caminhões por trens, uma regulação severa sobre a indústria de pesca, assim como sobre o uso de pesticidas e agrotóxicos na produção agroindustrial. Estas, e outras questões semelhantes, estão no coração da agenda do movimento por Justiça Global, e dos Fóruns Sociais Mundiais, que têm permitido, desde Seattle em 1999, a convergência dos movimentos sociais e ambientais em uma luta comum contra o sistema.


Essas bandeiras ecossociais urgentes podem levar ao um processo de radicalização, sob a condição de não se aceitar limitar alguma meta, conforme os interesses do “mercado [capitalista]” ou da “competitividade”. De acordo com a lógica do que os marxistas chamam de “um programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial pode imediatamente levar a uma demanda superior, para uma meta mais radical. Essas lutas em torno de questões concretas são importantes, não somente porque vitórias parciais são bem-vindas, mas também porque elas contribuem para elevar a consciência ecológica e socialista, e porque elas promovem atividade e auto-organização desde as bases: ambas são pré-condições decisivas e necessárias para uma radical, isto é, revolucionária transformação do mundo.
Não existe razão para otimismo: as entrincheiradas elites dominantes do sistema são incrivelmente poderosas, e as forças de oposição radical são ainda pequenas. Mas elas são a única esperança de que o curso catastrófico do “crescimento” capitalista será interrompido. Walter Benjamim definiu as revoluções não como sendo a locomotiva da história, mas a humanidade alcançando os freios de emergência do trem, antes que ele caia no abismo...



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(1) Para uma extraordinária análise da lógica destrutiva do capital, veja Joel Kovel, The Enemy of Nature. The End of Capitalism or the End of the World? N.York; Zed Books, 2002.

(2) John Bellamy Foster usa o conceito de “revolução ecológica”, mas ele argumenta que “uma revolução ecológica global digna do nome só pode ocorrer como parte de uma grande revolução social – e eu insistiria, socialista. Tal revolução (...) exigiria, como Marx enfatizou, que os produtores associados racionalmente regulassem a relação metabólica com a natureza. (...) Ela deve tirar sua inspiração de William Morris, um dos mais originais e ecológicos seguidores de Karl Marx, de Gandhi, e de outras figuras radicais, revolucionárias e materialistas incluindo o próprio Marx, voltando até Epicuro”. (“Organizing Ecological Revolution”, Monthly Review, 57.5, October 2005, pp. 9-10). Veja John Bellamy Foster, Marx’s Ecology. Materialism and Nature, New York, Monthly Review Press, 2000

(3) Veja John Bellamy Foster, A Ecologia de Marx. Materialismo e Natureza, Nova Iorque, Monthly Review Press, 2000

(4) F.Engels, Anti-Dühring, Paris, Ed. Sociales, 1950, p. 318.

(5) Joel Kovel, Enemy of Nature, p. 215.

(6) Ernest Mandel, Power and Money. A Marxist Theory of Bureaucracy, London, Verso, 1992, p. 206.

(7) D.Singer, Whose Millenium ? Theirs or Ours ? New York, Monthly Review Press, 1999, pp. 259-260.
Para salvar o planeta - Daniel Tanuro

O degelo progressivo dos pólos pode dar lugar a um desastre sem precedentes que irá gerar um aumento muito maior e mais acelerado do nível das águas. E um tratado “pós-Kyoto”, necessário para evitar a catástrofe, deve demorar a surgir.

Os processos dinâmicos ligados ao degelo – ainda não incluídos nos modelos atuais, mas sugeridos por observações recentes – podem aumentar a vulnerabilidade das calotas ao aquecimento, provocando a elevação do nível dos mares [1].” Essa pequena frase, extraída do quarto relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Evolução do Clima (GIEC), de 2 de fevereiro de 2007, não recebeu a atenção que merecia. Apesar de ter mencionado uma possível elevação dos oceanos, que devem crescer de 18 a 59 centímetros até o final do século, a mídia simplesmente não questionou a fundo as razões deste fenômeno. Tampouco o fez a sociedade.

Mas a pior notícia talvez ainda esteja por vir: de acordo com diversos climatologistas, o degelo progressivo pode ceder lugar a um desastre de grandes proporções, gerando um aumento muito maior e mais acelerado do nível das águas. Este cenário inquietante aprofundou o abismo existente entre a necessidade urgente de “salvar” o clima e as negociações em busca de um novo tratado “pós-Kyoto” – que será inicialmente discutido na Conferência das Nações Unidas, em dezembro, e continuará em pauta até o final de 2009, quando ocorre um novo encontro na Dinamarca. A vida de dezenas de milhões de seres humanos está em jogo, principalmente nos países do Sul.

Durante o verão, é possível observar nas regiões polares a formação de vastos reservatórios de água livre, que cavam “falhas” no gelo da superfície das calotas [2]. Na Groenlândia, um “lago” desse tipo, com cerca de 3 quilômetros de extensão, esvaziou-se em 90 minutos, como se fosse uma pia com o ralo destampado. Penetrando dessa forma até a base rochosa das geleiras, a água pode contribuir para a separação de gigantescas massas de gelo que, deslizando para o mar, provocariam uma elevação brusca das águas. É o pesadelo dos glaciólogos.
A desintegração das calotas não é linear. Além do mais, a escala de tempo muda completamente

Esses “processos dinâmicos” são observados há vários anos nas regiões árticas, onde a calota groenlandesa contém água suficiente para fazer com que os oceanos se elevem em até 6 metros. Mas a Antártida também tornou-se motivo de preocupação. Seu complexo glacial é formado por quatro elementos: a calota oriental, a calota ocidental, as geleiras da península e os planaltos de gelo que flutuam no oceano. Se a calota oriental desaparecesse, o nível dos oceanos seria elevado em 50 metros [3]! Felizmente, por enquanto ela continua estável. Mas, em contrapartida, o degelo é rápido na costa oeste da península, onde a elevação da temperatura não tem equivalente em qualquer outro ponto do planeta: foram 3°C a mais em 50 anos. A Nordeste, onde o termômetro indica 2.2°C em média para o verão, calcula-se que o aquecimento pode chegar a 0.5°C por década daqui para frente. Nessas circunstâncias, o provável derretimento dos gelos da península e da calota ocidental equivaleria, cada qual, a 5 metros de elevação no nível dos mares. Dois aspectos específicos tornam o perigo ainda maior. O primeiro é que os vales montanhosos da península antártica são menos estreitos e sinuosos que os da Groenlândia, de modo que as geleiras poderiam deslizar mais rapidamente em direção ao mar [4] – realmente, a velocidade do degelo triplicou nos últimos anos. O segundo é o fato de o maciço rochoso que sustenta a calota ocidental estar bem abaixo do nível do mar e, em muitos lugares, descer inclinado em direção à água [5]. Nesse caso, os especialistas estão preocupados com a circulação oceânica circumpolar, cada vez mais quente, que tende a se aproximar das costas e deve provocar o descongelamento da base submarina da calota.
A glaciação da Antártida se deu há cerca de 35 milhões de anos. Trata-se de um fenômeno que ocorre quando determinado patamar climático é ultrapassado

Para James Hansen, diretor do Goddard Institute for Space Studies da National Aeronautics and Space Administration (NASA), e outros oito especialistas que assinam com ele um artigo na revista Science, o perigo está mais perto do que se imagina [6]. Eles chegaram a essa conclusão analisando os paleoclimas: há 65 milhões de anos, a Terra quase não tinha gelo. A glaciação da Antártica ocorreu cerca de 35 milhões de anos atrás. De acordo com esses pesquisadores, trata-se de um fenômeno que acontece quando um patamar é ultrapassado: assim, os parâmetros relativos à radiação solar, ao albedo [7] e à concentração atmosférica do gás de efeito estufa favorecem o resfriamento. A conseqüência é uma diminuição do nível dos oceanos e as precipitações nos pólos se acumulam sob forma de neve.

Esse alerta deve ser levado muito a sério. De fato, as estimativas de elevação do nível dos oceanos são as projeções menosexatas do GIEC: de 1990 a 2006, o aumento foi de 3,3 mm/ano, enquanto se esperava 2 mm/ano [8]. A diferença – 60% – poderia resultar da difícil previsibilidade do comportamento das geleiras.

Caso o aumento da temperatura se estabilize em 2°C em relação a 1780, fim da época pré-industrial, os modelos projetam um elevação das águas entre 0,4 m e 1,4 metro ao longo de vários séculos. Entretanto, se considerarmos o diferencial de 60%, ele seria suficiente para fazer o nível variar entre 0,6 e 2,2 metros – estimativas provavelmente modestas, pois a desintegração das calotas não é linear. Além do mais, a escala de tempo muda completamente: se Hansen e seus colegas estiverem certos, não há sequer um minuto a perder para evitar uma possível catástrofe irreversível daqui a algumas décadas.
A preocupação dos cientistas aumenta, mas os governantes multiplicam a retórica, fundamentando os objetivos nas projeções mais conservadoras. Já o G8 busca “mecanismos flexíveis” para que o esforço dos países do Norte seja espontâneo e sem grandes impactos

Um aumento de um metro no nível dos oceanos colocaria em perigo centenas de milhares de pessoas, principalmente nos países do Sul. Cerca de 10 milhões de egípcios, 30 milhões de bengalis e um quarto dos habitantes do Vietnã perderam suas casas [9].

Londres e Nova York estarão igualmente ameaçadas. Evocando uma “situação assustadora”, o presidente do GIEC, Rajendra Pachauri, declarou recentemente estar esperançoso “de que o próximo relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Evolução do Clima possa fornecer mais informações sobre o provável degelo dessas duas grandes regiões – a Groenlândia e a Antártida Ocidental” [10]. Infelizmente, esse novo relatório só será publicado em 2013 e será muito tarde para influenciar as conferências internacionais de dezembro de 2008 e 2009, onde se discutirão os dispositivos pós-Kyoto.

Por enquanto, prevalece a subestimação do aumento das águas uma vez que as projeções atuais do GIEC, endossadas pelos principais governos, serviram de base para as decisões tomadas na Conferência sobre o Clima, realizada em Bali em dezembro de 2007, e que atualmente estão em vigor. Ainda segundo o GIEC, limitar o aumento da temperatura entre 2° e 2,4°C em relação à era pré-industrial implicaria em começar a diminuir as emissões de gás de efeito estufa no mais tardar em 2015, para reduzi-las até 2050 em 50 a 85% se comparadas ao nível de 2000. Nesse caso, o respeito ao princípio poluidor-pagador requereria um esforço específico importante por parte dos países desenvolvidos: as emissões deveriam diminuir entre 80 e 95% até 2050, passando por uma redução intermediária de 25 a 40% em 2020. Nesse período, ainda de acordo com o GIEC, os países em desenvolvimento também deverão se afastar substancialmente de seus cenários atuais e diminuir a poluição.

Menos restritivas que as recomendações de Hansen e sua equipe, esses apontamentos são, da mesma forma, desprezados pelas instâncias políticas. Jean-Pascal van Ypersele, professor de climatologia na Universidade Católica de Louvain e membro do gabinete do GIEC, observa que os membros do G8 regularmente pronunciam-se a favor de uma redução de 50% das emissões, mas evitam a todo custo mencionar os 85% que deveriam corresponder à sua parte da fatia global [11]. O G8 também não discute a responsabilidade que têm na mudança climática.

Infelizmente, é uma tendência seguida por todos os países. O pacote “energia-clima”, proposto pela Comissão Européia para o período 2013-2020, por exemplo, revela-se incompatível com a decisão, tomada em 1996, de limitar o aumento da temperatura a no máximo 2°C com relação a 1780. Já Barack Obama, o novo governante de uma das nações que mais polui o mundo, prevê, em seu plano energético, uma redução de 80% das emissões americanas em 2050, mas seu objetivo para 2020 consiste somente em voltar ao nível de 1990 [12], muito aquém do necessário.

Em resumo, enquanto a preocupação dos cientistas aumenta, os governantes multiplicam efeitos de retórica, mas fundamentam seus objetivos nas projeções mais conservadoras. Ao mesmo tempo, o G8 busca “mecanismos flexíveis” para que o esforço dos países do Norte seja feito quase de maneira “espontânea”, sem grandes impactos. A lógica dessa escolha foi explicitada pelo antigo economista-chefe do Banco Mundial, Nicholas Stern. Em seu relatório ao governo britânico, em outubro de 2006, ele recomendava “evitar fazer mudanças demais e de maneira muito rápida”, pois “há uma grande incerteza quanto aos custos de redução de 60% ou 80% na indústria, principalmente na aviação e num certo número de setores” [13]. O perigo presente aí é que a negociação climática pode acabar resultando numa meta determinada por preocupações baseadas no lucro, e não na proteção das populações e na salvaguarda do clima.

Desequilíbrio perigoso

Chegou a hora de fazer revisões dramáticas. Até agora, considerava-se que a concentração atmosférica limite em gás de efeito estufa oscilava entre 450 e 500 partes por milhão (ppm) de equivalente CO2 (CO2 eq), dos quais 360 a 400 ppm de CO2 [14] – um valor quase duas vezes superior ao período que antecedeu a Revolução Industrial. Mas o estudo da formação das calotas levou James Hansen, diretor do Goddard Institute for Space Studies da National Aeronautics and Space Administration (NASA), e seus colegas a afirmar que uma estabilização nesse nível nos levaria inevitavelmente a um mundo sem gelo [15] em longo prazo.

Quando a calota antártica se formou, a concentração atmosférica em gás carbônico situava-se entre 350 e 500 ppm. Atualmente, estamos em 385 ppm de CO2. Em situação de equilíbrio, isso corresponde a um aumento do nível dos oceanos “de pelo menos vários metros” e a história da Terra comprova que esse aumento pode ocorrer em menos de um século.

Entretanto, ainda temos tempo, explica Hansen: o aquecimento dos mares e o degelo são retroações lentas, diferidas. Por enquanto, os oceanos e as calotas absorvem a diferença crescente entre a temperatura média observada e a temperatura teórica de equilíbrio. Assim, a inércia térmica da água e do gelo desempenha o papel do fio que segurava a espada sobre a cabeça de Dâmocles... Ninguém pode dizer quando o fio vai se romper, mas sem dúvida alguma ele cederá, caso continuemos a acrescentar anualmente 2 ppm de gás carbônico no ar.

O cientista da NASA e seus colegas acreditam ser possível voltar rapidamente a um nível abaixo de 350 – e até mesmo 325 ppm de CO2 – fechando todas as centrais de carvão até 2030. Será possível?


[1] “The Physical Science Basis”, contribuição do Grupo de Trabalho1 (GT1) ao quarto relatório de avaliação do GIEC (2007), resumido pelos organizadores.

[2] Escavação onde um curso de água desaparece para se tornar subterrâneo.

[3] Relatório do GT1, GIEC, 2007, capítulo I, página 18.

[4] “Escalating Ice Loss Found in Antarctica”, Washington Post, Washington, 14 janeiro de 2008.

[5] “New Concerns on the Stability of the West Atlantic Ice Sheet”, Environment Times, United Nations Environment Programme (UNEP), 2004.Mais informações.

[6] Ler “Target Atmospheric CO2: Where Should Humanity Aim?”.

[7] O albedo do sistema Terra-Atmosfera é a fração da energia solar refletida para o espaço. Seu valor está entre 0 e 1. Quanto mais refletora for uma superfície, mais elevado é seu albedo.

[8] Artigo da Science, citado no Le Monde de 2 de fevereiro de 2007.

[9] Norman Myers, “Environmental Refugees in a Globally Warmed World”, BioScience, v. 43 (11), Washington DC, dezembro de 1993.

[10] “UN Climate Chief to Visit Antarctica”, ABC News, 8 de janeiro de 2008.

[11] Ver www.climate.be/vanyp

[12] “Barack Obama’s Plan to Make America a Global Energy Leader”

[13] Nicholas Stern, “Stern Review on The Economics of Climate Change” – relatório redigido por solicitação de Gordon Brown, à época, Ministro das Finanças –, 2006.

[14] O dióxido de carbono (CO2) é o principal gás de efeito estufa de origem antrópica. Sua concentração é expressa em partes por milhão (ppm CO2). Com o objetivo de facilitação, exprimem-se as concentrações dos outros gases de efeito estufa em partes por milhão de equivalentes CO2 (ppm CO2 eq). Não se deve confundir as duas noções.

[15] “Target Atmospheric CO2: Where Should Humanity Aim?”.